domingo, dezembro 10, 2006

EU SOU A ALMA COLORADA

Na madrugada do dia 17 de agosto, eu caminhei pela Padre Cacique. À minha volta, a felicidade tremulava ao sabor do vento frio. Inúmeras bandeiras. Centenas. Milhares. Era como se todo o tecido do mundo trajasse vermelho e branco e gingasse pelo ar, dançando o Celeiro de Ases. O céu parecia estar em brasa pelos fogos que espolcavam e desapareciam no breu, como numa ilusão.

Meus olhos. Minha pele. Minha vida. Tudo era de um rubro brilhante, como o sangue que corre em cada colorado. A cada passo que eu dava, as pedras das calçadas me saldavam. Os muros se curvavam. As grades aplaudiam. Árvores que nem mais existiam debruçavam seus galhos em reverência. Eram minhas velhas conhecidas.

Quantas vezes haviam me visto fazendo aquele mesmo trajeto. Sob chuva ou sol. Em parceria dos carros ou das corujas. Mãos nos bolsos. Chutando latas. Cabeça enterrada entre os ombros. Balançando negativamente. Absorto em minhas lamentações. Ao meu lado, pedidos de mudança. Súplicas por vitórias. Urros viscerais por um título. Baba raivosa pendendo na espera infindável de mais uma estrela no peito! Penosos anos 90. Quando o Inter já não era mais um clube. Era um estilo de vida. Uma causa a ser defendida. Se o sofrimento faz o poeta, nós éramos Nerudas de vermelho. Victor Hugos da Coréia. Quintanas do portão 8. Homeros do Serraria lotado.

Às nossas costas, alheio a tudo, o Gigante seguia imutável, embutido no solo que só ele pisou. Suas paredes mudas e frias, como muralhas escarlate, nascidas abaixo do chão, beirando o Inferno, subindo até espetar o céu, arranhando o Nirvana. O Gigante e sua magia estática, adormecida. Parecia que ele próprio, monstro santo de concreto e paixão, também sonhava com dias melhores e revia o filme de sua fase de ouro. Cada vinco de seu cimento carcomido trazia um murmúrio de pesar e saudade pretérita. As gotas de sereno que pendiam de seus holofotes eram as lágrimas de um templo vivo e angustiado. O Beira-Rio doía. E nós chorávamos com ele.

Mesmo assim, eu nunca desisti. Dormia Inter e acordava ainda mais Inter. Nos piores Momentos, recorria à história. Ela foi a minha salvaguarda. Minha doutrina. Me acalmava e enchia de orgulho. Reafirmava a grandeza e a dinastia que eu tinha o dever e a honra de seguir e defender com a própria vida.

Era só fechar os olhos e tudo aparecia em minha mente. Num átimo, eu era a Chácara. No outro, os Eucaliptos. Me via passando por cima de tudo, como Tesourinha, Carlitos, Vilalba e Motorzinho. Na tabelinha, eu ia de Bodinho para Larry. E de Larry para Bodinho. Via Gilson Porto centrando e Claudiomiro despertando o Gigante para a vida num grito de gol. Uma luz me cegava. Meus pés saíam do chão. Eu era o próprio Moisés chileno abrindo o mar vermelho com um soco no ar. Concavando a mão, como numa concha, ouvia o reverberar do lamento corintiano quando Waldomiro quase fundiu a bola ao poste, soldando a segunda estrela na eternidade.

Calçava as chuteiras de Falcão e corria pelo mundo, sem tocar as travas no chão, tal qual o Messias andava sobre as águas, num prodígio vermelho do talento genuíno que só um verdadeiro Deus é capaz de submeter. Com a 5 às costas, chamava Escurinho e reinventava a telecinese. Quando o medo batia, eu fugia até 79 e, lá, ninguém me vencia. Um pênalti salvador me acordava dos pesadelos, e o sopro arfante da minha respiração empurrava para os céus a poeira de quatro estrelas.

O Colorado se encravou no meu DNA e passará às gerações que de mim surgirem, numa linhagem rubra e sem fim. Porém, a dureza da época otomana deixou marcas profundas. Havia um sentimento de inferioridade velado. Um espécie de complexo.

Como se as grandes conquistas não fossem permitidas para nós. Resignado, eu fazia das palavras do grande José Pinheiro Borda a minha cartilha: “Eu me sinto orgulhoso em ser colorado. Apenas isso. Para mim, ser colorado é a maior coisa do mundo. Maior ainda porque eu posso falar. E, falando, eu posso dizer isso”.

Foi então que tudo aconteceu. Num delírio de febre, sonho ou embriaguez eu conheci a Alma Colorada. A divindade que faz do Inter algo acima do sagrado conversou com meu espírito e lhe ensinou que haveria de chegar o momento do futuro suplantar o passado. E então, o presente seria eterno. O Tempo se curvaria. Pararia as horas e os minutos. E os dias não teriam mais fim. Contudo, antes de cada glória, seria preciso lutar. Pelear. Como numa guerra.

E elas se sucederiam. Uma a uma. Com a destra sobre a minha fronte, a Essência Rubra mostrou o Parque Central e Rentería assombrando os charruas. Eu senti o ar faltar na altitude de Quito, mas respirei aliviado quando Clemer operou o milagre, no último suspiro. Num segundo, eu vi Alex. No outro, Fernandão. No seguinte, minhas lágrimas evaporavam junto ao Fantasma Paraguaio de 89. Por duas vezes, eu fui Sóbis. Calei. Rasguei. Pisoteei. Humilhei! Depois, cantei até minha voz ganhar forma de América, erguida ao cosmos pelas mãos do iluminado camisa 9.

Como se aquilo não fosse o bastante, a Alma Colorada tomou impulso nas barras da Popular e me fez voar em direção ao Sol, pegando carona em seu poente. O Astro-Rei mergulhou no Guaíba e emergiu no ombro do Monte Fuji. No alto da montanha congelada, o espectro cor de sangue falava. De sua boca, as palavras cintilavam, douradas como um dia fora o garoto Bráulio.

“Nesse ponto, começará uma nova guerra. Maior do que todas. Nos dias que antecederem as grandes batalhas, tu vagarás pela noite, como um zumbi alvirrubro, tomado por angústia e apreensão. E eu serei a tua calma. Tu não terás fome a não ser das próprias unhas. E eu serei o teu alimento. Não te preocupes se perderes a crença ou duvidares. Porque eu serei a tua esperança. Tu chegarás ao limite do esgotamento e passarás dele. E eu te darei descanso na sombra dos Eucaliptos imortais.

Porque eu sou a Alma Colorada. E faço teu sangue pulsar. É em mim que tu encontras a tua verdadeira essência. Eu sou o S, o C e o I entrelaçados sobre um vermelho de amor infinito. Antes do berço. Depois do túmulo. Nessa vida e nas outras.

Eu sou o manto rubro que toca a tua pele como se dela fizesse parte. Com meu brasão encravado no lado esquerdo do teu peito, eu te farei correr como se não houvesse amanhã. Brigar cada segundo como se não houvesse amanhã. Teu canto será a melhor forma de oração. E eu te farei rezar como se não houvesse amanhã. Mas olhando nos meus olhos, tu verás surgir o amanhã radioso de luz. E ele será o alvorecer de um novo mundo. Vermelho como a tua devoção”.

Durante anos, eu levei aquele encontro dentro de mim. Ele voltava à minha mente, em flashs. A cada derrota. A cada tropeço. A cada desdém. Nunca consegui compreender se fora sonho, devaneio ou a mais pura realidade. Até a madrugada do dia 17 de
agosto.

Quando eu caminhei pela Padre Cacique.
Emanuel Neves

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